Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogtailors - o blogue da edição

Pré-publicação: A Dádiva, de Toni Morrison (Editorial Presença)

24.10.09
«Não tenhas medo. O facto de eu contar não pode magoar-te, apesar do que fiz, e prometo manter-me silenciosamente no escuro — chorando, talvez, ou vendo ocasionalmente, uma vez mais, o sangue —, mas nunca mais estenderei os meus membros para me levantar e expor os dentes. Eu explico. Podes considerar o que te digo uma confissão, se quiseres, mas uma confissão repleta de curiosidades, familiares apenas em sonhos e durante aqueles momentos em que o perfil de um cão brinca no vapor de uma chaleira. Ou quando uma boneca feita de maçaroca sentada numa prateleira não tarda a estatelar-se no canto de uma sala e o perverso de como lá foi parar é evidente. Coisas mais estranhas acontecem a toda a hora e em toda a parte. Tu sabes. Eu sei que sabes. Uma pergunta é: "Quem é o culpado?" Outra é: "Sabes interpretar?" Se uma pavoa se recusa a chocar, interpreto isso rapidamente e, podes crer, nessa noite vejo a minha mãe de mão dada com o seu filho pequeno e os meus sapatos a encher-lhe a algibeira do avental. Outros sinais exigem mais tempo para serem compreendidos. Frequentemente há demasiados sinais ou um bom presságio ensombra-se demasiado depressa. Eu separo-os e tento recordar, mas sei que me está a escapar muito, como não interpretar a cobra do jardim rastejando até acima da soleira da porta para morrer. Deixem-me começar por aquilo de que tenho a certeza.

O princípio começa pelos sapatos. Em criança, nunca me habituei a andar descalça e sempre pedi sapatos, os sapatos de toda a gente, até nos dias mais quentes. A minha mãe, a minha mãe, tem a testa franzida, está cansada daquilo a que chama as minhas manias vaidosas. Só as mulheres más usam saltos altos. "Eu sou perigosa", diz, "e traquinas", mas compadece-se e deixa-me usar os sapatos postos de parte da casa da Senhora, de biqueira pontiaguda, com um salto alto partido, o outro gasto e uma fivela no peito do pé. Como consequência disso, afirma Lina, os meus pés são inúteis, serão sempre demasiado delicados e nunca terão as solas fortes, mais resistentes do que couro, que a vida exige. Lina tem razão. Florens, diz, é 1690. Quem mais, hoje em dia, tem as mãos de uma escrava e os pés de uma dama portuguesa? Por isso, quando saio para ir ter contigo, ela e a Mistress dão-me as botas do Sir, que são próprias para um homem e não para uma rapariga. Enchem-nas de feno e oleoso folhelho de milho e dizem-me que esconda a carta dentro da minha meia — sem querer saber da coceira causada pelo lacre. Sei ler, mas não leio o que a Senhora escreve e a Lina e Sorrow não sabem ler. Mas sei o que significa para dizer a quem quer que me detenha.

A minha cabeça está oca, da confusão causada por duas coisas: desejo de ti e medo de me perder. Nada me assusta mais do que este recado e nada é mais tentador. Desde o dia em que desapareceste que sonho e maquino. Saber onde estás e como estar lá. Quero correr pela trilha entre as faias e os pinheiros brancos, mas pergunto-me para que lado? Quem mo dirá? Quem vive no ermo entre esta quinta e ti, e quem quer que seja ajudar-me-á ou far-me-á mal? E os ursos sem ossos do vale? Lembras-te? Como, ao moverem-se, as pelagens oscilam como se não houvesse nada por baixo. O seu cheiro contrariando a sua beleza, os seus olhos conhecendo-nos de quando éramos também animais. Tu a dizeres-me o motivo por que é fatal olhá-los nos olhos. Eles aproximam-se, correm para nós em busca de amor e brincadeira e nós interpretamos mal e retribuímos com medo e cólera. Também lá fazem ninho aves gigantes, maiores do que vacas, como Lina diz, e nem todos os nativos são como ela, avisa, por isso, cuidado. Uma selvagem que reza, chamam-lhe os vizinhos, porque ela vai pouco à igreja e no entanto toma banho todos os dias e os cristãos nunca. Usa brilhantes contas azuis por baixo da roupa e dança em segredo ao nascer da primeira luz, quando a lua é pequena. Mais do que temer amar ursos ou aves maiores do que vacas, temo a ínvia noite. Como, interrogo-me, posso encontrar-te no escuro? Agora, finalmente, há um caminho. Tenho ordens. Está combinado. Verei a tua boca e arrastarei os dedos para baixo. Tu repousarás de novo o queixo no meu cabelo enquanto eu respiro para o teu ombro, cadenciadamente. Sinto-me feliz por o mundo estar a abrir-se para nós e, contudo, a sua novidade faz-me tremer. Para chegar a ti tenho de deixar o único lar, as únicas pessoas que conheço.»

144 páginas. PVP 13,40.
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue.

Pré-publicação: A Talentosa Flavia de Luce, de Alan Bradley (Planeta)

19.09.09
«Estamos no Verão de 1950 e Buckshaw é a decadente mansão inglesa onde Flavia mora com a sua família, o pai viúvo, coleccionador obsessivo de selos, e duas irmãs, nem sempre muito simpáticas… Com uma inteligência aguçada para a idade, Flavia vive num mundo próprio. Refugiada num velho laboratório vitoriano onde já ninguém vai, entretém-se a inventar venenos inofensivos que servem, no entanto, as suas pequenas vinganças domésticas. Uma menina com cara de anjo mas alguma maldade…

Subitamente, Buckshaw é atingida por uma série de acontecimentos inexplicáveis. Um pássaro morto é encontrado no degrau da porta, com um selo de correio espetado no bico. Algumas horas depois, Flavia descobre um homem caído no meio dos pepinos e vê-o exalar o seu último suspiro. Para a pequena, que fica ao mesmo tempo chocada e encantada, a vida começa realmente a sério quando o homicídio chega à velha mansão.

Uma pintura perspicaz do sistema de classes e da sociedade da época, A Talentosa Flavia de Luce é uma história de enganos magistralmente contada e um magnífico gozo literário.»

Capítulo 1:

«O interior do armário era preto como sangue velho. Tinham-me empurrado lá para dentro e trancado a porta. Respirei com dificuldade pelo nariz, lutando desesperadamente para me manter calma. Tentei contar até dez a cada inalação e até oito sempre que expirava devagar para a escuridão. Felizmente para mim, tinham puxado a mordaça com tanta força na minha boca aberta que as narinas se tinham desobstruído e conseguia aspirar e encher lenta e ritmicamente os pulmões com o ar bafiento e cediço.

Tentei enganchar as unhas dos dedos por baixo do lenço de seda que me atava as mãos atrás das costas, mas como as roía sempre até ao sabugo, não havia nada para agarrar. Fora por isso uma grande sorte ter-me lembrado de juntar as pontas dos dedos, usando-as como dez pequenas e firmes bases de compressão para manter as palmas afastadas quando elas tinham apertado os nós.

Rodei assim os pulsos, espremendo-os até sentir um pouco de folga, e usei os polegares para puxar a seda para baixo até que os nós se acharam entre as minhas palmas e, a seguir, entre os meus dedos. Se tivessem sido suficientemente espertas para pensar em atar-me os polegares, nunca teria escapado. Que perfeitas idiotas eram.

Com as mãos livres por fim, desfiz a mordaça num instante.

Agora a porta. Mas primeiro, para ter a certeza que não me preparavam uma emboscada, agachei-me e espreitei pelo buraco da fechadura para o sótão. Graças aos céus tinham levado a chave com elas. Não se via ninguém: exceptuando o perpétuo emaranhado de sombras, tralha e bricabraque triste, o comprido sótão estava vazio. A costa estava livre.

Erguendo o braço por cima da cabeça para a parte de trás do armário, desatarraxei um dos ganchos metálicos para casacos da sua tábua de suporte. Encravando a ponta curva no buraco da fechadura e usando a outra extremidade como alavanca, consegui formar um gancho em forma de L, que mergulhei nas profundezas da fechadura antiga. Algumas sacudidelas e empurrões judiciosos produziram um clique gratificante. Foi quase fácil de mais. A porta abriu-se e encontrei -me em liberdade.


Buckshaw era a casa da nossa família, a família de Luce, desde tempos imemoriais. A actual casa georgiana fora construída para substituir a original isabelina que fora completamente destruída pelo fogo por aldeães que suspeitavam que a família de Luce simpatizava com Orange. O facto de termos sido católicos fervorosos durante quatrocentos anos e assim continuarmos, não significara nada para os exaltados cidadãos de Bishop’s Lacey. A «Casa Velha», como era chamada, ardera e a casa nova que a substituíra ia agora no seu terceiro século.


Existia até um esqueleto humano articulado num suporte com rodinhas, oferecido a Tar, quando este tinha apenas doze anos, pelo grande naturalista, Frank Buckland, cujo pai comera o coração mumificado do rei Luís XIV.»

Alan Bradley nasceu em Toronto, e cresceu em Cobourg, Ontário. Formou-se engenharia electrónica, e trabalhou em várias estações de rádio e televisão, em Ontário, e no Instituto Politécnico Ryerson (agora Ryerson University), em Toronto, antes de se tornar director de Engenharia de Televisão.

Reformou-se em 1994, altura em que se dedicou por inteiro à escrita. Publicou vários textos infantis. O mais popular, Meet Miss Mullen, mereceu o prémio Saskatchewan Writers Guild Award for Children's Literature. Fundou The Casebook of Saskatoon, uma associação dedicada ao estudos de Sherlock Holmes.

A Talentosa Flavia de Luce é o seu primeiro livro para adultos, protagonizado por uma heroína infantil. Publicado em França, Alemanha, Espanha, Canadá, Estados Unidos e Inglaterra, o livro tornou-se de imediato um fenómeno junto do público e a pequena Flavia já tem uma página de fãs na Internet: http://flaviafanclub.ning.com

O autor foi distinguido com o Debut Dagger Award 2007.

Página de Alan Bradley em http://www.flaviadeluce.com

328 páginas. PVP 18,85.
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue.

Pré-Publicação: Um Outro - Crónicas de uma Metamorfose, de Imre Kertész (Editorial Presença)

31.05.09
Mil novecentos e noventa e um, Outono na margem fria do Danúbio, o crepúsculo, caindo, inundou com a sua cor ácida de maçã verde a espaventosa mentira dos palácios desbota-dos de Peste.

Tudo, em mim, adormece, imóvel e profundamente. Vou remexendo os sentimentos, e os meus pensamentos, como num tambor de alcatrão tépido.

Porque me sinto assim tão perdido? Manifestamente, porque estou perdido.

Tudo é falso (por minha culpa, por meu intermédio: a minha existência falseia tudo).

Se o vazio (o meu vazio interior) ressuma um sentimento de culpa, talvez isso permita concluir das origens. A angústia precedeu a Criação; o horror vacui é uma questão de facto ética.

Ontem, numa espécie de sessão — com uma chamada conferência excessivamente estúpida sobre a excessivamente estúpida «Hungarian­ jewish coexistence» —, um senhor mais velho precipitou­ se na minha direcção, tinha o rosto granu­loso e deformado, e manchas seguidas de cabelo ralo, como assentos gastos de certos canapés aveludados: nem um só traço me era familiar. Para grande surpresa minha, abraça­ me, de súbito, e apresenta­ se: um amigo que não via há trinta e cinco anos. Vive no estrangeiro. Ouviu falar de mim, lera os meus livros. Não compreende, diz, a minha «metamorfose». Então, ele nada notara de extraordinário em mim, nem eu dera mostras, digamos, de «capacidades superiores». Desculpei­ me um tudo-nada por este resultado inesperado, mas as suas palavras mexeram, na verdade, comigo. Tendi sempre, agora não menos do que antes, a considerar­ me um «Jedermann», alguém que, pelo menos de um certo ponto de vista, não receou esforçar­ se, e, antes de mais, no que respeita à lucidez de espírito. Quais são as minhas «capacidades superiores»? Não sigo a única inspiração deste país: o canto incessante e sedutor das sereias do suicídio espiritual, intelectual e, por fim, físico, e isso representa uma certa vitalidade. Contudo, assumir este mínimo como uma vitória seria gravíssima imprudência, e, mais do que isso, uma absoluta falta de cautela. O que mudou agora com a «mudança»? Já não há servidão? Fiquei a salvo de mim mesmo? Simplesmente, aconteceu que me devolveram a conditio minima, a minha liberdade individual — rangendo, abriu­ se, assim, a porta da cela em que me fecharam durante quarenta anos, e pode dar­ se que seja bastante para me perturbar. Não se pode viver a liberdade onde se viveu o cativeiro. Seria preciso ir para qualquer lado, ir para muito longe daqui. Não o farei.

Pois, nesse caso, seria preciso que eu de novo nascesse, me metamorfoseasse — em quem, em quê?

Chove. À mesa do restaurante, um homem explica qualquer coisa a uma mulher, qualquer coisa de inexplicável. Ele gostaria de abandonar os ensaios de felicidade que encalham regularmente. Sente­ se cansado de ir atrás do prazer pelas falsas estradas das promessas, que não conduzem a lado nenhum. Não é outra mulher, ora essa, nem pensar. A liberdade. Regressar à superfície, sair do turbilhão confuso das relações que se arrastam há anos. Está farto de reconhecer em cada uma das relações as suas próprias insuficiências. Vislumbra uma vida breve, intensa, criativa.

Pré-publicação: O Que o Dia Deve à Noite, de Yasmina Khadra (Edição Bizâncio)

01.05.09
«Orão sustinha a respiração nessa Primavera de 1962. Eu procurava Émilie. Tinha medo por ela.
Tinha necessidade dela. Amava-a e regressava para lho provar. Sentia-me capaz de enfrentar furacões, trovões, todos os anátemas, e as misérias do mundo inteiro. Já não suportava a sua falta. Já não suportava estender a mão para ela e só encontrar a sua ausência na ponta dos meus dedos. Dizia para comigo: Vai repelir-te, dizer-te palavras muito duras, fazer com que o céu te caia na cabeça; isso não me dissuadia. Já não temia faltar aos juramentos, esmagar a alma no aperto do meu punho; já não temia ofender os deuses, incarnar o opróbrio até ao fim dos tempos. Na livraria, disseram-me que Émilie saíra uma tarde e nunca mais dera sinal de vida. Lembrara-me do número do eléctrico que ela apanhara, aquando da minha última passagem, descera em todas as paragens, calcorreara todas as ruas por onde o eléctrico passava. Reconhecera-a em cada mulher na sua lide diária, em cada silhueta que desaparecia na esquina de uma avenida, à entrada de um edifício. Perguntava por ela nas mercearias, nas esquadras de polícia, junto dos moços de fretes, e nem uma única vez, apesar dos meus fins de dia inglórios, pensara que estava a perder o meu tempo. Mas onde a encontrar numa cidade em estado de sítio, numa arena a céu aberto, no meio do caos e da fúria dos homens? A Argélia argelina nascia a ferros numa enxurrada de lágrimas e de sangue; a Argélia francesa morria em sangrias torrenciais. E as duas, retalhadas por sete anos de guerra e de horror, embora completamente esgotadas, ainda arranjavam forças para se dilacerarem uma à outra como nunca. Os dias de barricadas, decretados em Argel em Janeiro de 1960, não tinham abrandado o curso inflexível da História. O golpe de Estado dos generais, lançado por um quarteirão de secessionistas em Abril de 1961, limitou-se a precipitar os dois povos numa tormenta surrealista. Os militares eram ultrapassados pelos acontecimentos; disparavam sem distinção sobre civis, rechaçando a carga de uma comunidade para cederem perante o ímpeto da outra. Os «ludibriados» pelas manobras de Paris – isto é, os defensores da ruptura definitiva com a mãe-pátria, a França – pegavam em armas e juravam recuperar, palmo a palmo, a Argélia que lhes confiscavam. As cidades e aldeias afundavam-se no pesadelo dos pesadelos. Atentados ripostavam a atentados, represálias a assassínios, raptos a raides de comandos. Desgraçado do europeu que fosse visto com um muçulmano, desgraçado do muçulmano que confraternizasse com um europeu. Linhas de demarcação dividiam as comunidades em ilhotas que, por instinto gregário, se fechavam sobre si mesmas, de sentinela dia e noite nas suas fronteiras, não hesitando em linchar o imprudente que se enganasse na morada. Todas as manhãs, descobriam-se corpos sem vida contorcidos nas calçadas; todas as noites, espectros entregavam-se a terríveis batalhas campais. Os graffiti nas paredes evocavam epitáfios. No meio dos «Votem sim», dos «FLN», dos «Viva a Argélia francesa», espalharam-se, sem dizer água-vai, as três iniciais do Apocalipse: OAS, a Organização Armada Secreta, nascida da agonia das colónias, da recusa do facto consumado, que iria cavar um pouco mais o fosso das perdições, mesmo nas profundezas dos infernos.

Émilie volatilizara-se, mas eu estava decidido a ir buscá-la aos confins dos limbos. Sentia-a muito perto, ao alcance da mão; acreditava convictamente que me bastava erguer uma cortina, empurrar uma porta, afastar um basbaque para dar com ela. Estava como louco. Não via as poças de sangue nos passeios nem as marcas de balas nas paredes. A desconfiança das pessoas não me atingia. A sua hostilidade, o seu desprezo, por vezes os seus insultos, atravessavam-me de um lado ao outro sem abrandar os meus passos. Só pensava nela, os seus olhos eram o meu único horizonte; ela era o destino que eu escolhera; o resto não tinha importância.»
352 páginas
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue.

Pré-publicação: A Divina Miséria, de João de Melo (Dom Quixote)

26.04.09
«Capítulo Primeiro

COMO SABE, SENHOR, A MORTE DE UM HOMEM É SEMPRE UMA DESORDEM INFINITA. OS OBJECTOS QUE ATÉ então lhe pertenciam ficam desde logo sem préstimo nem função para a vida; caem no torpor e no atordoamento – vagos, sem utilidade, sem alma. Falta-lhes o movimento, o sangue, o calor das mãos que os usavam. Falta-lhes o tempo, a idade, a saúde para que foram criados. Sobretudo, senhor, falta-lhes o ser. A própria matéria reduz-se à sombra que lentamente arrefece e depois se extingue nos quatro cantos da casa – que acaba também por esmorecer e mudar de cor. Nela, o ar torna-se irrespirável; o sol, desnecessário, oblíquo. E tudo se apaga, tudo deixa de ser real. A razão de ser das coisas não reside na sua natureza material, mas antes na metafísica existencial, que é a explicação de todo e qualquer objecto; ela como que emerge do fundo da sua própria extinção, da ausência dessa luz que lhes vinha animando a existência.

Digo-o, senhor, porquanto claramente vi que os espelhos do vestíbulo, ao receberem o sopro derradeiro e o suspiro da sua agonia, se aveludaram de bagas de humidade – como se o alento do morto tivesse voado ao encontro deles nesse mesmo instante – e deixaram de ser os olhos discretos da casa. A memória do defunto evadira-se-lhe do corpo. Estava sendo como que amarrada aos aspectos ignorados do mundo que fora o dele, mas que agora nos parecia estranhamente distante, inerte, à beira do vazio. Como se dali o tivessem varrido os ventos loucos do esquecimento.

Eu nunca estivera antes na casa do padre, compreende o senhor? Não tinha vida nem estômago para isso. Era, nesse tempo, um homem de mil ofícios e caminhos. O mundo sobrevivia, sabe como e porquê? Ora, porque eu o desratizava. Subindo e descendo, por ladeiras e estradas, essas aldeias todas do Nordeste, tocava o meu realejo à entrada da rua principal, vinham logo bandos de homens e mulheres a correr ao encontro dos meus serviços. Via-se-lhes nos olhos as vidas carregadas de pobreza e de uma tristeza sem remédio. Ou tinham tulhas cheias dessas pragas de murganhos que eu devia exterminar, ou traziam-me facas e tesouras e alfaias agrícolas a afiar à lima, ao esmeril, até à lixa grossa; ou então apresentavam-me guarda-chuvas com varetas e molas partidas, e outras ferramentas a precisarem de um conserto destas minhas mãos de mecânico de tudo e mais alguma coisa. Amolava enxós, serras, serrotes, ferros de arado, foices de ceifar trigo ou roçar silvas, o inferno em peso a passar-me pelos dedos. As pessoas pediam-me que lhes fizesse recados e chamadas telefónicas intercontinentais, que lhes levasse cartas para o correio e desse voltas e voltinhas por elas na Vila, à cata de papéis e encomendas, em diligências e estúpidas demandas junto da câmara municipal e do notário. Pagavam-me por isso o que entendiam ou bem podiam. Mas nunca me faltou trabalho, porque a verdade é que não havia em todo o concelho do Nordeste um desratizador como eu. Armava ratoeiras em tudo quanto fosse sítio de ratos: arribanas, cafuões de milho, armazéns de frutas, sótãos onde se vazavam o trigo, a fava, a batata-doce e a comida de Inverno para o gado. As casas ficavam presas e reféns das minhas armadilhas, tal qual o peixe miúdo numa malha entre as rochas ou os pássaros nas redes que eu lançava entre o canavial – enquanto ia amolando tesouras de costura, limando facas de cozinha ou rachando lenha para o lume. Depois ia ver as minhas ratoeiras. Os bichos agonizavam às centenas, espichados pelas duras molas desses meus engenhos, dando à cauda e às patas no ar, os olhos alucinados e as línguas de fora. Abria-lhes então uma boa cova no quintal, ajudava-os a morrer por misericórdia e enterrava-os às pilhas e mais pilhas, para que o mundo ficasse limpo e salvo de semelhantes pragas. À boca de Outubro ou de Novembro, consoante o tempo se anunciasse para a próxima estação, tornava-mecarvoeiro. Trabalhava numa furna inventada por mim, espécie de forno abafado, com controlo de fumos e calores, onde a lenha ardia da noite para o dia por sua conta e risco, até o fogo se extinguir por si e as achas se converterem em grandes troços de carvão que eu vendia a peso ou a saco para o tempo frio. Já por aqui se vê, senhor: com uma vida destas, como ia eu ter tempo e paciência para padres e missas? Agora! Razão por que, como lhe disse, nunca tinha estado antes naquela casa.»
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue.

Pré-Publicação: Norte, de Louis-Ferdinand Céline (Ulisseia)

04.04.09
«Norte, que constitui a segunda parte da derradeira trilogia de Céline, é a descrição de uma viagem ao apocalipse infernal da Alemanha nazi. O autor decidira, ele próprio, fugir de Paris e exilar-se nesse inferno, para escapar a uma morte certa, consciente como estava de que, se o não fizesse, seria sujeito a um castigo violento devido à sua colaboração com o ocupante e aos seus exaltados manifestos anti-semitas.

"Talvez em nenhuma outra fase, em nenhuma outra das suas obras, se tenha dado uma tão feliz confluência entre conteúdo e estilo do que nesta trilogia final (Castelos Perigosos, Norte e Rigodon) que a Editora Ulisseia está a publicar pela primeira vez na íntegra, em Portugal." (João Carlos Alvim)
"Os tempos mortos quase não existem… A narrativa é tensa e dramática, admiravelmente concebida a despeito de uma aparente displicência, e a capacidade de rir mesmo no seio da tragédia mais absoluta, que é característica de Céline, revela-se aqui no seu máximo esplendor." (Maurice Nadeau)»

Excerto:

«Eu, as minhas bengalas, a Lili, o Bébert, aqui estamos nós feitos turistas... à procura de um hotel!... esta cidade já sofreu bastante... tantos buracos e calçadas levantadas!... engraçado, não se ouvem os aviões... já não se interessam por Berlim?... eu não percebia, mas a pouco e pouco dei-me conta... era uma cidade só de cenários... ruas inteiras de fachadas, os interiores tinham ruído, afundados nos buracos... não tudo, mas quase... parece que em Hiroshima está tudo bem mais limpo, ceifado rente... a limpeza através dos bombardeamentos que também é uma ciência, ainda não estava afinada... ali, os dois lados da rua ainda davam uma ilusão... as portadas fechadas... e depois também era curioso que nos passeios, todos os escombros, as vigas, as telhas, as chaminés estavam cuidadosamente empilhados... não a monte, de qualquer maneira... cada casa tinha diante da porta os seus destroços, que atingiam a altura de um, dois andares... e destroços numerados!... se amanhã a guerra acabasse, de repente, não precisariam de oito dias para repor tudo no seu lugar... em Hiroshima já não conseguiriam fazê-lo, o progresso tem o seu lado mau... ali, em Berlim, oito dias, e voltavam a pôr tudo de pé!... as traves, os algerozes, cada telha, já identificados com números pintados a amarelo e vermelho... assim se via um povo com um sentido de ordem inato... a casa completamente morta, uma grande cratera, e todas as tripas e goelas de fora, a pele, o coração, os ossos, mas apesar disso tudo bem acondicionado, no passeio... como um animal no matadouro que, como por magia, recupere as vísceras todas! e hop!... parta a galope! se Paris tivesse sido destruída você havia de ver as equipas de reconstrução!... o que iam fazer das telhas, vigas, algerozes!... talvez duas, três barricadas?... se tanto!... ali naquela triste Berlim, eu via velhos e velhas da minha idade e mais ainda, já nos seus setenta, oitenta anos... e até cegos... totalmente dedicados ao trabalho... a levarem tudo para o passeio, a fazerem pilhas à frente das fachadas, a numerarem... os tijolos, aqui! telhas amarelas, ali!... cacos de vidro num buraco, tudo!... nada deixado ao deus dará!... com chuva, sol, ou neve, Berlim nunca fez rir ninguém!... um céu que nada consegue alegrar, nunca... logo à partida de Nancy, nada mais há a esperar... só dissabores e mais dissabores, graves, enormes fadigas, ataques de tristeza, guerras de sete anos... de mil anos... sempre!... olhe as caras deles!... até as águas!... o Spree... esse Estige dos teutões... como ele corre, inexorável, lento... tão lodoso, escuro... só de olhar para ele, vários povos perderem o pio, a vontade de rir... nós, a Lili, eu, o Bébert, olhávamo-lo do parapeito... uma senhora, uma alemã aproxima-se... quer falar connosco... é amiga dos animais... quer fazer festas ao Bébert... ele tem a cabeça fora do saco... olha como nós para o Spree... esta senhora pergunta-nos de onde vimos... de Paris!... somos "refugiados"... é uma mulher de coração, percebe que estamos em dificuldades..."Oh, os senhores vão ter grandes problemas com o vosso gato!" Eu não sabia, ela informa-me de que os animais domésticos, gatos, cães, "não-de-raça" e "não-reprodutores" são considerados "inúteis"... as leis do Reich determinam que sejam entregues o mais brevemente possível à "Sociedade Protectora"." Tomem atenção nos hotéis! com um pretexto ou outro o delegado deles passa... para uma pretensa "visita veterinária"... e vocês nunca mais vêem o vosso gato!... os SS treinam-se com eles, arrancam-lhes os olhos!... "Agora estamos prevenidos... agradeço-lhe... teremos cuidado com os hotéis!...»

Tradução de Clara Alvarez. Capa de Magda Macieira Coelho. 464 páginas. PVP 18,99.
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blogue.

Pré-Publicação: Dicionário do Judaísmo Português, de vários autores (Editorial Presença)

29.03.09
«ABADE DE BAÇAL. Francisco Manuel Alves (1865-1947), padre transmontano, autor das Memórias Arqueológicas do Distrito de Bra­gança, 11 volumes de investigação do ­património cultural do distrito, reserva o 5.o aos Judeus, ou seja, dedica­-lhes o primeiro volume reservado à História dos Homens, precedendo os volumes dos Fidalgos e dos Notáveis. Foi um dos descobridores da existên­cia de marranos*, assistiu à sua emergência como judeus, contando entre os amigos mais íntimos José Mon­tanha, um dos fundadores da comunidade e sinagoga de Bra­gança*, a quem dedica o volume e condiciona à sua opinião a publicação, dadas algumas suscep­tibilidades. A obra espelha a grande admi­ração do autor pelo povo judeu, pelo que no preâm­bulo explica a filiação do cristianismo no ju­daísmo, condenando o anti-semitismo, faz uma resenha da história dos judeus em Portugal, ­incluindo alguns apontamentos sobre os judeus contemporâneos do distrito e sobre as práticas reli­giosas e costumes dos judeus. Segue-se uma ampla listagem dos indivíduos pertencentes ao distrito e diocese de Bragança processados pela Inquisição ao longo dos séculos, quase na totalidade por judaísmo, e um pequeno apêndice documental sobre judeus e cristãos­-novos bragançanos.

Bib.: ALVES, Francisco Manuel, abade de Baçal, Os Judeus no Distrito de Bragança, in Bragança: Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, s. l., Câmara Municipal de Bragança/Instituto Português de Mu­seus-Museu do Abade de Baçal, imp. 2000, t. v; SALOMON, Herman P., The Captain, the Abade and 20th Century «Marranism» in Portugal, Paris, Fundação Calouste Gul­benkian, 1976, Sep. de Arquivos do Centro Cul­tural Portu­guês, vol. x; MEA, Elvira Cunha de Aze­vedo, «O Judaísmo no Século xx: A fénix renascida em Trás-os-Montes», in Actas do Congresso Histórico 450 Anos da Fundação, Bragança, 1997.

E. A. M.

ABAFADORES (ABAFADEIRAS). Al­guns autores referem-se à sua existência em Trás­-os-Montes e Beiras baseando-se numa tradição segundo a qual os judeus mandariam abafar os seus doentes que se encontrassem em estado terminal. Tal procedimento seria utilizado entre os cristãos-novos*, durante a vigência da Inqui­sição*, para evitar que o sacerdote católico chegasse a tempo de ministrar o sacramento da extrema-unção e que o moribundo denunciasse qualquer prática judaica mantida no segredo da família.

Os abafadores seriam chamados ao leito do doente mal se adivinhasse a morte próxima. O moribundo «era envolvido em cobertores e carregavam-lhe em cima até lhe darem morte por asfixia», diz José Leite de Vasconcelos* na Etno­grafia Por­tu­guesa. O autor afirma ter recebido a informação, em 1932, de uma pessoa de Bra­­gan­ça* a quem fora garantido por uma cristã­-nova que o abafamento ainda se praticava na região.

Leite de Vasconcelos acrescenta que, sempre que perguntava pela existência dos abafadores, lhe respondiam que os havia, mas ninguém presenciara o acto.

O abade de Baçal* também se ­refere ao assunto nas Memórias citando duas tes­temunhas presenciais.

Um outro autor, Samuel Sch­warz*, consi­dera tratar-se de uma lenda decorrente do facto de, à hora da morte, os vizinhos cristãos verem entrar para junto do moribundo os homens que celebram as ceri­mónias fúnebres a quem tomavam por abafa­dores.

O escritor Miguel Torga, em Novos Contos da Mon­tanha («O Alma Grande»), conta a história de um abafador e descreve o seu procedimento.

Bib.: ALVES, Francisco Manuel, abade de Baçal, Os Judeus no Distrito de Bragança, in Bragança: Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, s. l., Câmara Municipal de Bragança/Instituto Português de Museus-Museu do Abade de Baçal, imp. 2000, t. v; VASCONCELOS, José Leite de, Etnografia Portuguesa, Lis­boa, Imprensa Nacional, 1967, vol. 4; SCHWARZ, Samuel, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX, Lis­boa, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões, 1993.

M. J. F.»

«O Dicionário do Judaísmo Português que agora se apresenta, procura dar uma imagem abrangente e sistematizada da presença judaica em Portugal e da presença e actividade dos judeus de origem portuguesa no mundo. O universo da obra estende-se desde o estabelecimento de judeus no território que é hoje Portugal, atestado desde o séc. V, até ao presente, passando pela diáspora espalhada pelo mundo. Para além das entradas de carácter histórico, a obra contempla ainda noções básicas sobre festas religiosas, rituais e instituições comunitárias judaicas, bem como um glossário de termos hebraicos e índices onomástico e geográfico.

Já bastante se escreveu sobre os judeus portugueses, como os artigos deste dicionário testemunham. O nosso objectivo é reunir e divulgar de forma sintética conhecimentos actuais sobre o assunto, e proporcionar ao público em geral um instrumento de referência até aqui inexistente. Cada entrada remete para uma bibliografia essencial que o leitor interessado em explorar o tema de forma mais ampla pode consultar. Não temos a pretensão de dar a questão por encerrada. Conscientes de que o tema é bastante vasto e complexo, esperamos que esta obra contribua para suscitar o interesse e o desenvolvimento dos estudos judaicos em Portugal e, em geral, sobre os judeus portugueses. Gostaríamos ainda de salientar que se trata de um Dicionário de Judaísmo e não da Inquisição, pois esta instituição, embora intimamente relacionada com a temática do Judaísmo Português, merece, pela sua complexidade e pelo facto de transcender intrinsecamente a questão judaica, um Dicionário distinto, a par das obras já publicadas.

Os artigos foram elaborados por mais de sessenta especialistas das questões respectivas, os quais melhor do que ninguém podem escrever sobre os assuntos que investigaram, por vezes durante décadas. Reflectem, por isso, a abordagem própria e o estilo dos seus autores, e ainda o estado dos conhecimentos da altura em que o Dicionário foi iniciado, há cerca de oito anos atrás.

Por último, uma nota sobre o título da obra: Dicionário do Judaísmo Português. Existem diversas obras sobre os judeus sefarditas, que incluem sob essa designação judeus de origem portuguesa e espanhola. Mas, muitas dessas obras confundem e privilegiam os judeus espanhóis e o seu legado social e cultural em detrimento dos portugueses. A expressão "judeo-espanhol" frequentemente utilizada para as comunidades ibéricas na diáspora é disso um exemplo. É verdade que, a partir da expulsão dos judeus da Península Ibérica e, nomeadamente, durante o período da União Dinástica (1580-1640), se tornou por vezes difícil distinguir entre uns e outros. O contexto em que se moviam e incluíam era ibérico, a língua "franca" era o castelhano, a cultura secular em que banhavam era a mesma e as comunidades que constituíam na diáspora eram na sua maioria mistas. Assim, optámos por privilegiar o contributo social e cultural dos judeus de origem portuguesa em Portugal e no mundo, bem como o de todos aqueles relacionados com este país.

Esperamos que esta obra possa contribuir para um conhecimento mais vasto do público interessado e seja um instrumento de trabalho útil para estudiosos e investigadores.

Os Coordenadores»
-
Consulte a oferta de formação da Booktailors na barra lateral do blog.

Pré-Publicação: «Silver Bay - A Baía do Desejo», de Jojo Moyes

22.03.09
«Há muito tempo, quando os meus pais morreram e eu fiquei à frente do Hotel Silver Bay, muitas pessoas disseram-me que devia aproveitar a oportunidade para o modernizar, para instalar casas de banho nos quartos e televisão por satélite, como tinham em Port Stephens e em Byron Bay, que devia fazer mais publicidade,sobre a beleza da nossa pequena extensão de costa. Dei-lhes ouvidos durante alguns momentos – a nossa falta de clientela há muito que deixara de me preocupar, como desconfio que era o caso na maior parte de Silver Bay. Tínhamos visto os nossos vizinhos ao longo da costa, em ambas as direcções, engordarem com os lucros, mas depois terem de viver com as consequências inesperadas do sucesso: congestionamentos de tráfego, veraneantes bêbedos, uma sucessão interminável de modernizações e instalações. A perda da paz.
Eu gostava de pensar que, em Silver Bay, tínhamos encontrado o equilíbrio certo – visitantes suficientes para ganhar a vida, mas não tantos para que alguém começasse com ideias. Há anos que via a população de Silver Bay aumentar e duplicar na época alta do Verão, voltando a diminuir nos meses de Inverno. O aumento de interesse pela observação de baleias causava um pico fora de época, de vez em quando, mas, de uma maneira geral, o negócio era estável, com poucas probabilidades de nos tornar ricos mas também de nos causar grandes aborrecimentos. Éramos apenas nós, os golfinhos e as baleias. E isso chegava perfeitamente para a maioria das pessoas.
Silver Bay nunca fora particularmente hospitaleira para os forasteiros. Quando os primeiros europeus chegaram, em finais do século XVIII, foi inicialmente considerada uma zona inabitável, com os seus afloramentos rochosos, o mato e as dunas inconstantes, demasiado árida para sustentar a vida humana. (Suponho que, nessa altura, os aborígenes não eram considerados suficientemente humanos.) Os baixios costeiros e os bancos de areia travaram o interesse, fazendo encalhar e destruindo os navios que nos visitavam, até à construção dos primeiros faróis. Depois, como sempre, a ganância conseguiu o que a curiosidade não conseguira: a descoberta de florestas de madeira lucrativas ao longo das colinas vulcânicas, e os vastos bancos de ostras, acabaram com a solidão da baía.
As árvores foram abatidas até as encostas estarem quase despidas. As ostras foram apanhadas para cal e, mais tarde, para comer, até ser proibido, antes de serem também elas dizimadas. Para ser honesta, quando o meu pai aqui chegou não era melhor que os outros: viu os mares a pulularem de pesca grossa – espadins e atuns, tubarões e espadartes – e viu lucro naquilo que a natureza fornecia. Uma série interminável de prémios à sua porta. E assim, neste último afloramento rochoso de Silver Bay, construiu-se o nosso hotel, com todos os tostões das poupanças do meu pai e de Mr. Newhaven.»

Jojo Moyes nasceu em 1969 e cresceu em Londres.
Estudou jornalismo e foi correspondente do jornal The Independent até 2002, quando publicou o seu primeiro romance, Sheltering Rain, e resolveu dedicar-se à escrita a tempo inteiro.
Publicou depois Foreign Fruit (2003), The Peacock Emporium (2004), The Ship of Brides (2005), Silver Bay (2007) e Night Music (2008).
Com Foreign Fruit obteve o prémio «Romantic Novel of the Year», para o qual esteve também nomeada por The Ship of Brides e por Silver Bay.
Para mais informações sobre a autora e a sua obra visite o site
www.jojomoyes.com.

Tradução de Elsa T. S. Vieira. 416 Páginas. PVP 16,50

Pré-Publicação: Regresso à Patagónia, de Bruce Chatwin e Paul Theroux (Quetzal)

21.03.09

«Uma das obras que Darwin levou para bordo do Beagle foi Voyage towards the South Pole do capitão JamesWeddell (no brigue Jane e no escaler Beaufoy). Weddell navegou mais para sul do que todos os que se tinham aventurado até então e, a 8 de Fevereiro de 1822, na latitude 74º 15’ avistou baleias,«aves parecidas com o petrel» e muitas léguas no mar alto. Anotou na sua carta marítima «Mar de Jorge IV – Navegável» e transmitiu a ideia de que as águas se tornavam mais quentes à medida que se aproximavam do pólo.

Voltando para norte, em direcção ao arquipélago do cabo Horn, na ilha de Hermit, teve uma refrega com canoas cheias de índios fueguinos que ameaçavam tomar o navio. Conseguiu persuadi-los a ficarem sossegados enquanto lhes lia um capítulo da Bíblia – que escutaram com uma expressão solene no rosto, tendo um deles chegado a acreditar que era o próprio livro que falava.

Weddell anotou então algumas palavras da lingual deles e concluiu que era hebraico, embora admitisse que a questão de saber como tinha chegado ao cabo Horn «fosse matéria de filólogos».

Aconteceu então que, enquanto Darwin escrevia o seu Diário durante a viagem do Beagle, havia um exemplar do livro de Weddell sobre a secretária do editor do Souther Literary Messenger de Richmond, na Virginia, de seu nome Edgar Allan Poe.

O próprio Poe era um viajante solitário, obcecado por viagens de aniquilação e renascimento; e utilizou a obra de Weddell Voyage towards the South Pole como fonte de inspiração para o seu relato de uma viagem louca e autodestrutiva. No romance As Aventuras de Arthur Gordon Pym, o narrador chega a uma amena ilha do Antárctico chamada Tsalal, onde tudo é negro, incluindo os seres selvagens e brutais que invadem como um enxame o navio Jane. Falam uma lingua que é também um variante do hebraico – por outras palavras, os habitants de Tsalal são fueguinos ficcionados, com umas pinceladas do preconceito do próprio Poe contra os negros.

As Aventuras de Gordon Pym é uma das obras mais maldosas, mais brilhantes e, pelo seu efeito sobre a imaginação, mais influentes do século XIX. Inspirou Dostoiévski a escrever uns dos seus raros ensaios literários; e, ao ser traduzido para francês por Baudelaire, serviu de fonte a toda a série de poemas de «viagem» - desde o incomparável «Le Voyage» do próprio Baudelaire («Mais les vrais voyageurs sont ceux-là qui partent seulement pour partir…») ao poema em prosa de Rimbaud «Being Beateous».

Mas os Fueguinos, que contribuíram para desencadear tudo isso, eram um povo bastante gentil, que vivia segundo o ritmo das estações, contentando-se com o que tinha. Em finais do século XIX, o reverendo Thomas Bridges fixou-se como missionário do Canal Beagle e, antes da extinção dos seus índios, devido a uma epidemia, conseguiu compilar um dicionário a partir da lingual deles. Esse dicionário é agora um monumento à existência. Darwin teria ficado surpreendido ao tomar conhecimento de que um jovem da tribo Yaghan tinha um vocabulário de cerca de trinta mil palavras, talvez ainda mais do que as que Shakespeare escreveu.»

Bruce Chatwin (1940-1989) é um dos mais aclamados escritores de literatura de viagens de sempre. Foi jornalista da Sunday Times Magazine durante vários anos, e a sua carta de demissão ficou célebre – no telegrama ao seu superior lia-se apenas «Fui para a Patagónia». O seu livro mais célebre é, justamente, Na Patagónia, um clássico da literatura contemporânea, que, segundo The Gardian, «conferiu novos contornos à literatura de viagens».
Paul Theroux nasceu em Medford, no Massachusetts, em 1941. Passou cinco anos em África antes de partir para Singapura, onde foi professor universitário. Entre os livros que publicou contam-se Riding the Iron Rooster, Chicago Loop, Picture Palace (prémio literário Whitebread em 1978), e The Mosquito Coast (que ganhou ex aequo o James Tait Black Memorial Prize); e ainda O Velho Expresso da Patagónia, The Great Railway Bazaar, The Elephanta Suit e Ghost Train to the Eastern Star, que serão publicados pela Quetzal em 2009 e 2010. Paul Theroux é casado, tem dois filhos e vive entre Cape Cod e Londres. Mais sobre o autor: http://www.paultheroux.com/

Tradução de Maria do Carmo Figueira. 76 páginas. PVP 9,95.